segunda-feira, 21 de junho de 2010

Autênticos em 1500, hoje ou em 2154?

João Pacheco de Oliveira
Antropólogo, professor titular do Museu Nacional/UFRJ

É comum jornais, filmes e comerciais de TV suporem que os índios são (ou deveriam ser) iguais àqueles descritos pelos primeiros cronistas, inteiramente exteriores ao universo ocidental. Nessa representação, o tempo transcorreu de modo absolutamente diverso para “brancos” e “índios”. Uns, os não indígenas, estão situados na História e se caracterizam pela variabilidade, mudança e complexidade. Os outros, os indígenas, são como estátuas de pedra, que apenas podem apresentar-se como idênticas ao que antes (supostamente) eram.
Recusar ao índio a História e o exercício da própria voz, imaginando-o apenas antes da chegada dos brancos, é um expediente útil para silenciar sobre o violento processo de colonização, propiciando uma autoanistia aos colonizadores. É essa categoria redonda, inteiramente infensa à História, plena de seduções e lisa de culpas, que o senso comum repete e consagra incessantemente. Em estudos anteriores, eu apontei um artifício narrativo que chamei de “o efeito túnel do tempo”. O artifício garantia a qualquer não índio, como em um passe de mágica, uma flagrante superioridade em relação a qualquer indígena. É também com base nisso que a tutela, apesar de autoritária e etnocêntrica, veio a ser simploriamente legitimada como instituto necessário e até filantrópico. Tal ideia está muito viva nas mais variadas manifestações discursivas dos brasileiros: artes, literatura, chiste e linguagem cotidiana. Os índios seriam algo apenas relativo ao passado colonial do Brasil, havendo uma enorme e generalizada dificuldade em compreender os índios atuais.
O reconhecimento se limita a faixas da Amazônia, onde ainda haveria grupos isolados e arredios (“índios verdadeiros”). Os demais são ditos apenas “remanescentes”, índios “misturados” e, no limite, “falsos índios”. Pretende-se instituir uma polaridade entre as culturas indígenas “intocadas” (seriam as autênticas) e aquelas afetadas por “processos de aculturação” (seriam inautênticas) . Partindo daí, setores da administração pública colocam em segundo plano as demandas de “índios” no Nordeste, seja omitindo se face ao reconhecimento de suas terras, seja criminalizando suas lideranças e enquadrando- as em
um regime carcerário próprio de praticantes de crimes hediondos (vide www.abant.org. br).
Os direitos indígenas, tais como definidos na Constituição de 1988 e na Convenção 169 (acolhida no Brasil em 2003), não decorrem, porém, de uma condição de pureza cultural a ser comprovada nos índios e coletividades indígenas atuais, mas sim do reconhecimento pelo estado de sua condição de descendentes da população autóctone. Trata-se de um mecanismo Compensatório pela expropriação territorial, pelo extermínio de incontáveis etnias e pela perda de uma significativa parcela de seu patrimônio cultural.
Não é justificado estabelecer parâmetros arbitrários para definir o que é (ou o que deva ser) uma cultura indígena. A incorporação de rituais, crenças e práticas exógenas não necessariamente significa que aquela cultura já não seria “autenticamente indígena” ou pertencesse a “índios aculturados”. Para constituir analiticamente uma cultura, é preciso partir do que pensam, fazem e sentem os seus portadores atuais. É preciso libertar-se do efeito “túnel do tempo”, da abordagem objetificante e da relação tutelar.
Os debates sobre Belo Monte nos evidenciam essa complexidade. Ali se expressam as velhas concepções sobre os indígenas, que alimentam tanto argumentos desenvolvimentistas quanto ambiguidades do discurso tutelar. Manifestase também uma tensão no interior do novo paradigma, uma vez que os indígenas buscam exercer o seu protagonismo, mesmo
assumindo posições temporariamente antagônicas — como no caso da aldeia Paquiçamba. Aprender a respeitar e a lidar com a contemporaneidade do indígena será um aprendizado importante para as autoridades.
Os embates ideológicos fizeram curiosamente reviver o potencial da figura do índio, apropriando- se agora da poderosa máquina de fabricação de mitos que é o cinema e remetendo-os ao futuro. A retórica dos ecologistas estabeleceu um paralelo entre os Na’vi e os indígenas atuais da região, visando a apontar os riscos para o ecossistema amazônico e mesmo planetário. A disputa pela autenticidade remete agora a 2154!

----------------------

POLÍCIA FEDERAL PRENDE MÃE E BEBÊ TUPINAMBÁ

A Polícia Federal prendeu na tarde de hoje, feriado de Corpus Christi, a índia Glicéria Tupinambá e seu filho de apenas (02) dois meses. Glicéria é liderança de seu povo e membro da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI. Vinculada ao Ministério da Justiça, a CNPI tem entre seus integrantes representantes de 12 ministérios, 20 lideranças indígenas e dois representantes de entidades indigenistas. Na tarde de ontem, 2 de junho, Glicéria participou da reunião da CNPI com o Presidente Lula, oportunidade em que denunciou as perseguições de que as lideranças Tupinambá têm sido vítimas por parte da Polícia Federal no Sul da Bahia.
No dia seguinte, quando tentava retornar para sua aldeia, Glicéria – tendo ao colo o seu bebê de dois meses – foi detida ao descer do avião, ainda na pista de pouso do aeroporto de Ilhéus (BA), e diante dos demais passageiros, por três agentes da Polícia Federal, numa intenção clara de constrangê-la. O episódio foi testemunhado por Luis Titiah, liderança Pataxó Hã-hã-hãe, também membro da CNPI, que a acompanhava.

Após ser interrogada durante toda a tarde na sede Polícia Federal em Ilhéus, sempre com o bebê ao colo, Glicéria recebeu voz de prisão da delega Denise ao deixar as dependências do órgão. Segundo informações ainda não confirmadas, a prisão foi decretada pelo juiz Antonio Hygino, da Comarca de Buerarema (BA), sob a alegação de Glicéria ter participado no seqüestro de um veículo da META (empresa que presta serviço de energia na região). Esse juiz em entrevista concedida ao repórter Fábio Roberto para um jornal da região, se referiu aos Tupinambá como “pessoas que se dizem índios”. Mãe e filho serão transferidos para um presídio na cidade de Jequié, distante cerca de 200km de sua aldeia.
Desde que a FUNAI iniciou o processo de demarcação da Terra indígena Tupinambá as fazendas invasoras da terra indígena passaram a contratar pistoleiros, fazendeiros dos municípios de Ilhéus e Buerarema iniciaram campanhas difamatórias nas rádios e jornais locais, incitando a população regional contra os índios, o que resultou numa série de conflitos envolvendo pistoleiros, fazendeiros e indígenas. Como conseqüência da disputa pela posse da terra os Tupinambá respondem a uma série de inquéritos e processos criminais patrocinados pela Polícia Federal, numa estratégia clara de criminalização de sua luta legítima em defesa de seu território tradicional. Em decorrência dessa ofensiva de criminalização já estão presos os indígenas Rosivaldo (conhecido como cacique Babau) e Givaldo, irmãos de Glicéria que passa a ser terceira presa política Tupinambá.

A animosidade nutrida pela Polícia Federal em relação aos Tupinambá já se tornou crônica.  No dia 23 de outubro de 2008, numa ação extremamente agressiva, a PF atacou a comunidade indígena da Serra do Padeiro, deixando 14 Tupinambá feridos à bala de borracha, destruiu casas e veículos da comunidade, a escola indígena e seus equipamentos, e ainda deteriorou a merenda escolar. Dois Tupinambá foram presos na ocasião. Em junho de 2009, após outra ação de agentes da PF juntamente com fazendeiros - numa ação de reintegração de posse -, sinais de tortura em cinco Tupinambá ficaram comprovados por exames de corpo de delito realizados no Instituto Médico Legal do Distrito Federal. O inquérito, levado a cabo pelo mesmo delegado que coordenou a ação dos agentes, concluiu entretanto pela inocorrência de tortura. Nenhum dos agentes foi afastado durante ou após as investigações. No dia 10 de março de 2010, numa ação irregular, a Polícia Federal invadiu a residência do cacique Babau em horário noturno (duas horas da madrugada), destruindo móveis e utilizando extrema força física para imobilizar o Cacique, que acreditava estar diante de pistoleiros, pois os agentes estavam camuflados, com os rostos pintados de preto, não se identificaram e não apresentaram mandado de prisão, além de proferir ameaças e xingamentos.
O Conselho Indigenista Missionário, preocupado com a integridade física e psicológica de Glicéria e seu filho, vem a público manifestar mais uma vez o seu repúdio ao tratamento dispensado por órgãos policiais e judiciais ao Povo Tupinambá. Reafirma seu compromisso em continuar apoiando a luta justa do povo pela demarcação de seu território tradicional e conclama a sociedade nacional e internacional a se manifestar em defesa da causa Tupinambá e pela imediata libertação de seus líderes.

Brasília, 3 de junho de 2010.

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Nenhum comentário:

Postar um comentário